Gravura Brasileira

Ana Elisa Dias Baptista

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"Ciranda" no Museu Victor Meirelles
O Museu Victor Meirelles, em Florianópolis (SC), inicia seu calendário de 2007 com a exposição "Ciranda", da artista Ana Elisa Dias Baptista, que apresenta 33 gravuras. Texto de Néri Pedroso.

Contra a ameaça do tempo e da morte, Ana Elisa Dias Baptista, autora das obras da exposição "Ciranda", no Museu Victor Meirelles, em Florianópolis (SC), criou uma poética de assombro. As 33 gravuras em metal revelam um discurso incomum que nasce de um desejo quase desesperado de documentar o drama do desaparecimento. As obras integram duas séries de trabalhos de mostras anteriores, "Gabinete das Maravilhas" e "Perinde ac Cadáver, Morte Vermelha".
Ana Elisa é formada em artes visuais pela FAAP. Traz no seu currículo mostras individuais e coletivas no Brasil e no mundo, como as recentes exposições "Insecta", no Studio Quinn Galeria de Arte, "Prelúdios", no espaço Graphias, "Gravura Contemporânea do Brasil", no Goloborotko´s Studio, em Nova York, "XIII Bienal Internacional de Cervera", em Portugal e "Em imagens falamos", no ateliê Amsterdams Grafische, na Holanda. Desde 1987, participa de grupos de gravura, salões e bienais, como o "Salão de Arte Contemporânea de São Paulo", de Piracicaba, Americana, Ribeirão Preto, "1ª Bienal de Gravura de Santo André", "3ª Bienal de Santos" e "2ª Trienal de Gravuras", em Chamálière, França, entre outros. Integrou a mostra "Investigações: a Gravura Brasileira", trabalho de referência em gravura no país, realizado pelo Instituto Itaú Cultural.
O foco da artista não se centra no feio ou bonito, no íntegro ou no incoerente. Feito uma voyeur, registra um processo objetivo, sem sujeito. Na evocação de uma experiência singular, que consiste na coleta de insetos e animais mortos – aranhas, besouros, passarinhos, cachorros, morcegos, porco-espinho, mariposas, gatos, moscas, baratas - Ana Elisa atesta-se um ser contracorrente, em caminhos inversos.
Construtora de paisagens um tanto bizarras, opõe-se ao paisagismo que na história da arte, no século 19, ganhou importância quando os artistas se libertaram da função documental e passaram a pintar a natureza com cavaletes postados ao ar livre. Neste caso, o movimento é outro. As obras são gestadas em ambiente intimista, num ateliê instalado numa chácara a 40 quilômetros da cidade de São Paulo, onde a artista espera que seus "modelos se apresentem para o serviço", os animais e insetos que morrem perto da casa. Como colecionadora, espeta os mais frágeis com alfinetes em lâminas de isopor, outros são acompanhados detidamente em seu processo de decomposição. Um lagarto, uma cobra coral que apareceu na sala, o rato morto pela cachorra, o gambá que morreu depois de fortes convulsões, um grande inseto verde encontrado na pia da cozinha, a cigarra afogada. Não é o fenômeno da cor, da luz, da atmosfera que interessa, mas sim o processo impactante do desaparecimento.
Ana Elisa vai além no seu colecionismo. Sem pudor, organiza essas cenas de desfiguramento nas quais a figura humana é pura ausência, cria cirandas capazes de provocar perplexidade. Instaura ordem e beleza diante da morte, uma experiência ocultada nas cidades. "O cachorro atropelado logo é retirado, o pássaro morto varrido, a barata esmagada vai água abaixo com a maior rapidez possível. A morte é franquiada pelos hospitais, nossos mortos vestidos por funcionários e entregues 'to-go' nos velórios. Aqui o porco-espinho morre e fede, pleno de vida (literalmente), acena lentamente com a cabeça pela vontade das larvas. A pequena cachorrinha Chameau, morta pela cachorra maior, fedeu um tempão antes de poder recolher sua cabeça. Bem como as gatinhas Lelé e Kiri-te, Água-raz, outra cachorrinha que tão novinha a ossada é quase irreconhecível como de um cachorro", conta a artista que trabalha como se estivesse escrevendo um diário. "Desenho para não perder, aprisionando no papel aqueles ou aquilo que de outra forma desaparecerá."
Impasse existencial
O olhar não está a serviço de imagens oficiais, coloca-se contra o ocultamento do maior impasse existencial, a morte. Tema-tabu, o assunto é silenciado, escondido. Socialmente não é bom falar nele, porque está embasado num temor generalizado e multidimensional. Como uma dissecadora, a artista acaba por discutir o fenômeno civilizatório ocidental, que nega e evita o confronto do ser com a iminência do fim, o enfrentamento do limite, um desconhecido assustador que revela o provisório e o precário. "O ser humano é um ser para a morte", escreveu o filósofo Martin Heidegger (1889-1976).
Ao pensar o colecionismo no livro "O Sistema dos Objetos" (Editora Perspectiva) o intelectual francês Jean Baudrillard dá luz sobre a ação criadora da artista. Os objetos, diz ele, constituem-se em um "sistema graças ao qual o indivíduo tenta reconstituir um mundo, uma totalidade privada". Como um espelho, desempenham um papel regulador na vida cotidiana, abolindo neuroses, tensões e aflições. Quando possuídos são sempre uma singularidade absoluta, segue Baudrillard. "É uma irreversibilidade do nascimento para a morte que os objetos nos auxiliam a resolver", afirma, lembrando que eles hoje, "quando se atenuam as instâncias religiosas e ideológicas, acham-se em vias de se tornar a consolação das consolações, a mitologia cotidiana que absorve a angústia do tempo e da morte". Na coleção, "triunfa o empreendimento apaixonado de posse, nela que a prosa cotidiana dos objetos se torna poesia, discurso inconsciente e triunfal".
Ordenando o caos
Ana Elisa celebra a vida e o desenho, exímia que é nesta disciplinada tarefa. "O desenho começa a partir de um primeiro erro. É sempre um desafio. A gente vai ordenando o caos", depõe. Numa organização aparentemente criteriosa, gestos de agregação e integração, posiciona-se como uma guardiã da vida. Recusa as dissimulações relacionadas ao tema-tabu, põe a mão na massa e passa a elaborar a própria mortalidade. Na abordagem de aceitação e acolhimento, de busca da organização do caos, de uma possível e utópica contenção contra o desaparecimento, a artista busca uma estrutura emocional frente ao inexorável. Estabelece uma abertura, um canal de comunicação com o mistério da vida humana.
A ciranda (o círculo) neste caso remete, também, aos simbolismos de uma vida após a morte. Como um rito, o desenho recupera a experiência negada (silenciada, escondida), assume um caráter regenador e até - quem sabe - terapêutico diante do temor da morte. Em seus depoimentos, Ana Elisa escreve: "Não tenho opinião definida sobre nada, o lado consciente participa muito pouco do meu trabalho, eu diria que passo por um processo mediúnico".
Ao retratar insetos despidos de passado e futuro, alguns no seu processo em decomposição, Ana Elisa espia nas frestas de um mundo instável, pleno de interstícios e descontinuidades, constrói uma metáfora do tempo contemporâneo, uma civilização que nega o fim, enaltece a juventude e aproxima a felicidade do consumo. Corajosa, dona de gravuras surpreendentes em seu detalhamento, parece propor um mergulho para pensar melhor a crise existencial também fruto da ausência de perspectiva de continuidade.
Néri Pedroso
25/02/2007


Sobre a autora :
http://www.netprocesso.art.br/oktiva.net/1321/nota/17257/
 

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