Gravura Brasileira

Sheila Goloborotko

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um daqueles lugares sublimes

Há uma poema, entre as doze séries de trabalhos de autoria da artista Sheila Goloborotko, neste catálogo que acompanha sua exposição, que fala de uma cidade “imaginária” que se chamaria Bagdá.
Um lugar que não estaria “mapeado” em nossa imaginação. Mas do que se pode apreender do poema seria tratar-se de uma “cidade-pomar” ou um “pomar-cidade” que estaria envolto em brumas,
escondido em nossa memória. Talvez seja este um daqueles lugares sublimes que cultivamos internamente
e que guardamos apenas para nós. As árvores seriam os nossos pensamentos, e os frutos os nossos desejos mais íntimos. O pomar seria formado por árvores-vestígios que constróem um arquivo em que vamos armazenando os frutos colhidos na nossa passagem pelo mundo de maneira a acumularem-se na nossa memória, na forma de experiências vividas.

Em uma sociedade em que no momento tudo é controlado, inclusive os nossos pensamentos, esse
pomar torna-se o nosso refúgio mais seguro. Um lugar onírico que nos permite sonhar com um mundo fantástico como o visto nas gravuras da artista, feito de sombras espectrais, corações dilacerados, espelhamentos do eu, olhos que nos espreitam curiosos, cérebros que representam esse arquivo-memória, células que compõem corpos sobre o papel, escadas que nos levam para lugar nenhum, mapas e trilhas traçados sobre o acetato em que aparecem palavras soltas mas carregadas de significados e que ficam num plano da subjetividade das nossas emoções. 

Esse mundo criado pelas gravuras de Sheila Goloborotko também forma um pomar de imagens onde guarda os seus sentimentos mais profundos, os desejos mais significantes, as grandes dúvidas, os maiores medos e as lembraças mais dolorosas. Assim, acaba por expor traços de sua intimidade que compõem a cosmografia de sua cidade interior, carregada de sua história, de sua construção interna. Uma cidade de muitos pomares vista em sua obra.
A imagem mais recente que tenho de Bagdá, é a de uma cidade que se avistava de longe na tela da televisão, localizada em algum lugar no Oriente da nossa noção geográfica. Era uma noite de março de 2003. Bagdá estava às escuras e tinha o céu coalhado por pontos luminosos. Eram bolas de fogo que a deixavam em chamas, em mais uma noite em que era bombardeada naquela guerra.

Umm Al-Basatin ou “a mãe dos pomares”, em português, é o título de uma das doze séries de gravuras apresentadas nesta exposição, realizadas em 2007. São dez gravuras impressas sobre papel
e duas sobre metal. Os papéis são toscamente cortados e de pequeno formato, um mesmo desenho ou forma que se repete e que nos faz lembrar vagamente um alvo ou a planta de uma cidade circular. O que as diferencia de uma para outra são as cores quentes impressas de fundo nos tons terrosos variados inspirados nas cores da areia e da terra do deserto. Seria um campo árido e seco o descrito por Sheila nessas gravuras, distante daquela imagem inicial sugerida de um pomar verde e salpicado pelos amarelos e vermelhos das frutas que brilhariam sob o sol. Percebe-se, nesse conjunto gráfico, uma intenção política na ação artística. Um desejo de posicionar-se para questões que atormentam
o mundo.

A artista nasceu em São Paulo e formou-se em arquitetura, colaborou com Otávio Roth montando o ateliê Handmade, em São Paulo, no começo dos anos 80, onde aprendeu a fabricar o próprio papel.
Depois radicou-se desde 1983, em Nova York, onde fundou seu estúdio em que concentra sua produção e pesquisa. Já foi premiada com o Brooklyn Arts Council Regrant Award em seis edições seguidas. Fez parte do corpo docente do Brooklyn College e atualmente leciona no Pratt Institute, também em Nova York. Uma escola conceituada criada há mais de cem anos para desenvolver as práticas artísticas manuais à época. A linguagem gráfica merece ainda hoje um certo destaque na
grade escolar, preservando os seus preceitos mais ancetrais. A artesanalidade e o esprírito colaborativo.
Sheila Goloborotko ministra um curso aberto sobre a prática da gravura em que reitera essa intenção colaborativa entre alunos e professor nos processos criativos.

A artista também mantém um “laboratório”, o Goloborotko’s Studio, aberto em 1989, em Dumbo, no Brooklyn, em Nova York. Nesse ateliê desenvolve o projeto Hands and Eyes on Printmaking, voltado para talentos emergentes. O projeto virou referência por revelar artistas interessados em criar um trabalho de colaboração e inovação nas artes gráficas. Este lugar e o Pratt Institute têm algo em comum, nos fazem lembrar aquela idéia que temos dos ateliês de gravura como “cozinhas” de criação e de conhecimento. E é esta uma das características mais louváveis destes espaços de trabalho. Serem pontos de encontro e trocas. A gravura continua sendo, no bom sentido da palavra, coisa de artesão (mesmo quando o artista se propõe a trabalhar com as novas mídias digitais). O artista-gravador de maneira generalizada, não anseia por ser “o grande artista”, mas sim, dentro de uma postura ética, ser antes de tudo, um bom artista fiel a sua proposta plástica e poética.
 
A paixão que a gravura provocou em artistas e colecionadores geralmente aficcionados pela técnica, e sua presença marcante na arte brasileira do século XX, tornou-se no mínimo peculiar diante do grau
atingido de seu desenvolvimento como linguagem híbrida no final do mesmo século. A artista Sheila Goloborotko é um desses artistas apaixonados pelo que faz. A gravura em tempo integral.

A linguagem, das mais abertas a hibridar-se com outras tantas, tem importante papel na disseminação
da arte, no ativismo político e no colecionismo.

Esta exposição, que apresenta a produção mais recente da artista, evidencia essa pluralidade nos seus métodos experimentais usados na criação de suas gravuras. Sheila Goloborotko é desses artistas que fizeram uma escolha ao desenvolver uma obra gráfica ao longo de suas carreiras. Mas diferentemente de muitos que não conseguem descolar de um trabalho “técnico e artesanal”, a artista traz fundamentos conceituais para o campo de sua arte sem deixar o seu conhecimento técnico se tornar o fim último do trabalho.

A sua gravura sai da parede, desloca-se do papel para superfícies como o acetado, fios de metal são usados para “costurar” imagens e fatos. Os elementos gráficos e os suportes usados na impressão vão
variando de uma série para outra. Sem se prender a uma tradição da linguagem, a técnica gráfica que funciona apenas como um suporte para sua obra poética é a gravura em metal. São situações únicas ou obstáculos diferentes que são transpostos na geração de cada gravura.

São simulações de conhecimento que tratam da poética do vivido, do experimentado. Na série Os olhos, de 2006, a artista com a representação mais simples de um olho, vai repetindo à exaustação o seu desenho. Sempre o mesmo a nos observar por detrás do plano do papel, como se estive ali em um outro lado do mundo. Como se aquelas folhas de papel tomassem vida, ou como se ali contivessem uma vida a nos espreitar.

São pequenos os olhos azuis a nos observar curiosamente.

Ricardo Resende
São Paulo, Setembro de 2008

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