SOBRE
Elisa Arruda (1987) é uma artista visual nascida na região amazônica. É Mestre em Arquitetura e Urbanismo pela FAUUSP (2017) e atualmente vive e trabalha entre Belém e São Paulo. Seu trabalho é representado pela galeria B_arco (SP).
O interesse poético de Elisa tem como centro a condição da mulher, isto é, os relevos e camadas de tempo que a vida e seus atravessamentos acrescentam ao corpo feminino. Os temas ligados à memória, laços de afeto, rupturas, maternidade, à vida cotidiana e ao amadurecimento estão subscritos em suas obras.
Sua produção é uma narrativa analítica e ficcional, que reverbera a poesia, a música e a fala diária a partir de reelaborações e estudos. São obras que se apresentam como relatos expressos em gestualidades pictóricas, por meio do trabalho com o papel e corpos escultóricos. Uma abertura de voz para que sua personagem e espaço de vida se apresentem. Entretanto, suas criações são mais do que versões de si mesma. A artista se vê, mas convida o público para que se reconheça também, em seus próprios corpos e realidades sociais. Esse espelho fala por si, como no poema de Sylvia Plath, “Mirror”: “I am not cruel, only truthful” (“não sou cruel, só real”).
No percurso de Elisa Arruda, o desenho foi o ponto de partida, porém ao longo dos anos diferentes técnicas se apresentaram como desdobramentos possíveis de sua narrativa. O desenho é a base, mas a gravura, a fotografia e o vídeo-registro, aliados a objetos e à matéria física do seu cotidiano, surgem como suportes.
Realizou exposições individuais sob a curadoria de Alexandre Sequeira (PA), Vânia Leal (PA), Julia Lima (SP), Renato de Cara (SP) e Yohana Junker (EUA). Foi premiada por editais de instituições de arte todo o Brasil, tais como o Prêmio Marcello Grassmann – Artes Gráficas (2021), o Edital de Pautas do Espaço Cultural do Banco da Amazônia (2021), o Salão Sacilotto (2020), o Salão de Itajaí (2018) e a Bolsa de Pesquisa e Experimentação da Casa das Artes do Pará (2017).

OBRAS

























texto crítico
Elisa Arruda vive e trabalha entre Belém e São Paulo.
É no trânsito entre esses dois lugares – tão singulares quanto distintos – que seu trabalho começou a se desenvolver.
De um lado, o interesse pela arte teve como porta de entrada o design e a arquitetura, por meio de uma profunda pesquisa sobre as construções vernaculares ribeirinhas no Pará, especialmente no Porto do Sal. Dali emergiram temas fundamentais para a artista: a casa, o feminino, a cor, o popular, os corpos. E foi então que, da esfera acadêmica, veio a dimensão do fazer.
De outro lado, nos ateliês de gravura de São Paulo, Arruda começou a transpor diminutos desenhos em nanquim de figuras femininas para a impressão a partir de matrizes de metal: uma das técnicas mais difíceis dos diferentes suportes gráficos.
Suas personagens riscadas e gravadas revelaram-se espécies de versões duplas da própria artista, como heterônimas ou alteregos.
Carregadas de uma força primordial e matriarcal, elas dançavam, celebravam, se tocavam e criavam uma comunidade de mulheres unidas na potência. Foram muitas as personagens–gêmeas produzidas, sempre exibidas agrupadas em constelações. Mas logo a natureza bidimensional da gravura passou a ser desafiada pela artista em experimentos com dobras, perfurações e cortes – procedimentos que, de certo modo, evocavam as gambiarras precárias das casas e palafitas que ela havia investigado tão estreitamente.
Primeiro, as mulheres começaram a ganhar camadas, pequenos apetrechos que permitiam mutilá-las ou abri-las, desvelando suas entranhas. Depois, novos trabalhos partiram para volumes maiores, deixando de lado a imagem literal do corpo para lançar mão de objetos inanimados.
Contudo, os artefatos que Arruda começou a construir continuavam se relacionando com a figura humana: eram camas, cadeiras e até casas inteiras, coisas inertes que existem para se relacionar com o que é vivo.
Afinal, o que poderia saber mais sobre nosso corpo do que o assento do nosso lugar à mesa, ou o nosso lado do leito? A cama, aliás, aparece literal e fisicamente em uma obra que expande, e muito, a escala dos trabalhos. A instalação escultórica de mesmo nome apresenta o objeto e o colchão partidos ao meio, corporificando os traumas e violências que acontecem cotidianamente entre quatro paredes.
Novamente, parece haver um eco das pesquisas sobre a vivência das mulheres no Porto do Sal. A cama carrega muitas camadas ambíguas, entre o repouso e o vigor do sexo; entre o doméstico e o público, do refúgio à prisão. As efígies cindidas e abertas das gravuras anteriores poderiam muito bem habitar esse lugar.
Por fim, a artista também passou a edificar pequenas casas de papel apresentadas em redomas poligonais de acrílico, espécies de misturas-sínteses de todas essas referências e fazeres em um objeto fortemente simbólico e igualmente comum e identificável.
É impossível não pensar nas primeiras pinturas de Louise Bourgeois, “Femmes Maison”, nas quais a francesa retratava corpos femininos com uma casa no lugar da cabeça, sem identidade própria, aprisionados pela domesticidade.
De certo modo, Elisa Arruda – nas casas, nos desenhos, nas gravuras, nas cadeiras, nos objetos e, de novo, nas casas – parece tentar, reiteradamente, devolver a esses corpos de mulheres (as presentes e as ausentes) certa inteireza que sempre lhes foi negada.
Julia Lima [sp], 2022
INFORMAÇÕES
texto crítico
Val Sampaio - 2022
Sobre Elisa Arruda:
(Exposição Gravuras montáveis, espaços desmontáveis / CCSP)
O conjunto de trabalhos apresentados por Elisa Arruda reflete e tensiona a lógica bidimensional das imagens. Seus questionamentos apontam para lugares sensíveis de pesquisa sobre as técnicas e a linguagem da gravura, bem como a recusa em aceitar de forma paciente as características historicamente atribuídas pela arte para a atuação da gravura. A problemática levantada a partir dessas obras aponta para a imagem gravada a partir da hipótese de que o corpo das imagens seria uma resultante das relações entre o corpo da obra no espaço, o corpo do artista e o corpo do receptor.
A série parte da gravação de imagens usando técnicas conhecidas da gravura. Os trabalhos buscam identificar as costuras dos acontecimentos, mundos e corpos: entre a artista e a obra, entre a obra e o corpo, entre o corpo, a obra e o espaço, buscando desse modo delimitar o espaço de existência no qual a imagem acontece, de forma que ele que tenha um potencial instaurador. Entendendo a imagem como algo que empresta visibilidade a uma coisa que não tem possibilidade no mundo material e imaterial.
Na gravura, a imagem estampada se constrói numa relação com os instrumentos que prolongam o corpo do artista; a técnica expressa tanto a experiência da artista/gravadora quanto as qualidades do material. Pedra, madeira, homem, tinta, rolo, papel, prensa: objetos técnicos individualizados, prolongamentos sem dominado nem dominante. Para nos aproximarmos da técnica da gravura, no que concerne à gravura tradicional, temos que pensar no objeto técnico que a configura.
Elisa Arruda (1987) é uma artista visual nascida na região amazônica, que transita entre a gravura, pintura, desenho, aquarela, fotoperformance e instalação. Em seu trabalho, mobiliza uma série de elementos autobiográficos, articulando conceitos e ideias múltiplas, repletas de camadas latentes. Seu percurso pela técnica da gravura surgiu como extensão da sua experiência com o desenho: a partir de 2019 "mergulhou na gravura em metal", e partiu dessa técnica para a produção de objetos que tensionam a bidimensionalidade e a relação com espaço e volume das suas impressões, ultrapassando o limite expressivo do gesto técnico da gravura como impressão que resulta do contato do papel com a matriz para a performance do gesto, que rasga as estampas gravadas.
A gravura contemporânea compreende a existência de um fazer técnico e de um pensamento estético em sua constituição. A técnica da gravura segue uma tradição; ela é operatória, está na ordem do conhecimento científico, atuando sobre uma forma de arte determinada preparo da matriz, execução da imagem, gravação, preparo da tinta, rolos, superfície na qual será multiplicada a imagem. Toda técnica é uma estrutura do tempo, da memória, traz-nos sentimentos ambíguos, desafiando-nos a trabalhar com a tradição e subverter alguns elementos que regem as convenções do fazer da gravura.
Elisa Arruda se permite subverter o conhecimento técnico da gravura para imprimir movimento e volume nas suas peças gráficas, por intermédio do ato performático de rasgar, destacar e dobrar suas estampas após a impressão. Esse movimento começou durante a pandemia, e através da leitura "Um, nenhum e cem mil", título considerado o romance mais complexo do grande dramaturgo, romancista e contista italiano Luigi Pirandello (1867-1936). O romance faz uma especulação metafísica, poética e bem-humorada sobre o protagonista Vitangelo Moscarda e sua identidade. É um romance que questiona o leitor sobre a sua existência, a partir de como você se percebe no mundo e de como o mundo te percebe.
A experiência de auto-reclusão provocada pela pandemia de covid-19 e a leitura de Pirandello insuflou a artista para uma mudança de rota. A partir desse momento, Elisa Arruda parou de desenhar pessoas, mulheres - temas recorrentes em trabalhos anteriores.
"Pirandello me falou de um sujeito que amava seus móveis, falava que a cadeira dele tinha o formato do seu corpo, se ajustava à ele. Aquele ambiente e momento me fizeram desenhar casas e mobílias como se fossem minha família", confessa Elisa Arruda.
Nas confissões de Elisa Arruda, a obra de Pirandello lhe permitiu transcender para um pensamento tridimensional da gravura, trazendo para suas peças uma outra dimensão poética e apontando para a gravura uma "personalidade da vida presente nos obietos inanimados".
Em um momento de pura epifania, a casa, a planta da casa, a fachada, as mesas, as cadeiras tomam um outro sentido: "esses objetos de papel - feitos por meio de estampas gravadas e depois destacadas e montadas
- têm o desejo de sustentar no corpo frágil do material o insistente gesto do desenho no metal". Nesse relato, Arruda apresenta a gravura como desejo do objeto técnico e fica expressa a essência do trabalho, o seu compromisso pela sua matéria de trabalho, o desenho e a gravura.
Na série Gravuras montáveis, Espaços desmontáveis, Elisa Arruda pratica a lição de Mira Schendel, que estampou, em meados de 1960, trabalhos de extrema delicadeza e economia de traços, transformando objetos em materiais únicos, segundo Guy Brett. No seu exercício, Arruda busca a singularização do objeto reprodutível.
A imagem se repete em algumas obras dando ênfase à essência da gravura como técnica, mas o gesto da rasgadura e da dobra em algumas dessas repetições e tensiona a delicadeza dos traços marcados na matriz. Nessa relação com a imagem geradora, com a matriz da matriz da gravura, Arruda expõe no espaço uma cadeira de madeira desmontada, cada pedaço da cadeira organizado como nos seus desenhos estampados em imagens. Os trabalhos desenvolvem um tratado sobre a leveza transcrita na elegância do traço calculado, característica do objeto técnico, a gravura encharcada de vir a ser da imagem, pula para o espaço e sobre o vazio preenchido pelo desenho, pela impressão da gravura e transforma-se em volume.