SOBRE
BRANCOS PLENOS, PRETOS ABISMAIS
Maria do Carmo Carvalho ganhou reconhecimento nacional e internacional por sua produção em gravura, especialmente em metal – técnica que exige uma considerável especialização devido às dificuldades intrínsecas a seu método produtivo. Às suas gravuras podem-se atribuir todos os predicados geralmente imputados a grandes obras: pesquisa de linguagem; maestria de luz e cor; exploração formal; qualidade técnica excepcional.
Sua reputação como exímia gravurista e a especificidade de sua mídia de escolha não a restringiram, no entanto, a este meio. Ao longo de sua trajetória, Maria do Carmo desenvolveu uma ampla pesquisa pictórica, marcada pelo interesse pela cor e por uma ousada pesquisa de materiais. Mais que isso, a linguagem desenvolvida pela artista ao longo de décadas é dotada de uma consistência que perpassa todas as mídias e suportes que se apropriou, linguagem essa marcada, mais que qualquer outra coisa, por um desejo escultórico, uma busca subversiva pela extrapolação do plano dentro dos limites do plano mesmo.
Neste sentido, três séries são excepcionais e solicitam uma leitura mais atenta: as pinturas em técnica mista sobre tela da série “Brancos plenos” (2003-2014); os painéis de grandes dimensões da série “Pretos abismais” (2013-2014); e as acrílicas sobre papel da série “Recortes” (2014). Se antes, em suas gravuras em metal, monotipias e óleos sobre tela, podíamos intuir, com maior ou menor evidência, o caráter objetual e escultórico da linguagem cultivada e aprimorada pela artista ao longo de décadas, neste grupo de trabalhos ela se apropria de materiais cotidianos e, em alguns casos, de descarte para criar colagens e obras de técnica mista que, por mais que possam ser inicialmente lidas como pinturas (e não menosprezem os elementos característicos à pesquisa pictórica), possuem uma presença tridimensional tamanha que exigem ser compreendidos como objetos.
Seus “Brancos plenos” inicialmente parecem encaixar-se em uma longa tradição de pinturas brancas — impossível não pensar em Turner, Malevich e Rauschenberg. A colagem de materiais cotidianos poderia aproximá-los ainda mais do pop ou outros do século 20. No entanto, a especificidade dos objetos utilizados e o contexto de produção da artista inevitavelmente deslocam essas obras para outro campo: o da arte feminista das últimas décadas do século 20. Ao utilizar linhas de costura de costura, filtros de café, gaze e tinta acrílica, Maria do Carmo simultaneamente atém-se e transfigura o universo doméstico. Como para muitas artistas de sua geração, o uso de materiais tradicionalmente pertencentes ao universo feminino possui um caráter duplo de praticidade (inúmeras vezes lhes foi necessário produzir suas obras com o que estivesse à mão) e de recuperação/valorização desse universo. Ao trazer para o campo da arte materiais simbólicos da subjugação feminina, algo de emancipatório acontece.
Enquanto seus trabalhos brancos são delicados e relacionados ao que se entende tradicionalmente por universo feminino, se continuarmos operando segundo essa lógica dicotômica vemos – por seu peso ou pelo uso de materiais associados ao trabalho industrial (como lona e metal) – como é fácil esquecer a forte história feminina da classe operária, e o papel imprescindível das mulheres na indústria na Europa conturbada por guerras.
Expressivos respingos de tinta ao fundo e o uso consciente de poucos e impactantes campos de cor remetem ainda ao expressionismo abstrato norte-americano, talvez um dos movimentos mais masculinos do século 20.
Em comum com os “Brancos plenos”, os painéis têm a apropriação e ressignificação de materiais de descarte pelo campo da arte. A exibição das duas séries na mesma sala nesta individual é fruto de uma reflexão que nada tem de casual. Para além de sua complementaridade cromática e de suas similaridades de linguagem, o movimento realizado pela artista na passagem de uma série para outra é bastante significativo. Enquanto os trabalhos brancos valorizam elementos do universo feminino — e, ao fazê-lo, subvertem seu caráter opressor —, os “Pretos abismais” mostram uma artista confortável com materiais e uma estética que há pouco (e talvez ainda hoje por muitos) poderia ser considerada masculina, estética pela qual se move com a liberdade de quem se encontra em terreno comum aberto e igualitário.
Por fim, é com seus “Recortes” que o desejo escultórico, sempre latente em sua obra, emerge estrondosamente. Como de hábito, a artista utiliza como suporte um material pouco nobre, apesar de já bastante explorado pela arte contemporânea – o papel kraft. O papel irregular è manuseado por ela de forma livre e não convencional em nada se assemelhando ao tratamento dado por artistas que o encaram como um substituto da tela. Com recortes e sobreposições, ela transforma essas obras em exercícios de exploração do espaço, trazendo para o mundo as formas antes confinadas a suas gravuras e pinturas. Essa materialização se dá, no entanto, sem necessidade de romper com a bidimensionalidade do papel – uma pouco provável união entre subversão e sutileza.
Caroline Carrion
Crítica e curadora

OBRAS

























Bio
Maria do Carmo Carvalho (nascida em 1941, Jacareí, SP) é uma artista brasileira que se destaca no campo da gravura e das artes plásticas. Estudou com renomados artistas como Waldemar da Costa, Sérgio Fingermann, Branca de Oliveira e Nazareth Pacheco. Além disso, participou de workshops com Artur Lescher, Ana Maria Tavares e Regina Silveira, entre outros.
Maria do Carmo Carvalho participou de diversas exposições no Brasil e no exterior. Entre as mais notáveis estão a IX Internazionale Triennale – Intergraphit 90 (Berlim, Alemanha), Impression Bleu, projeto da associação Presse Papier (Quebec, Canadá), e Brazilian Contemporary Printmakers, no Pratt Institute – Steuben West Gallery (Nova York, EUA). Sua carreira foi reconhecida com uma série de prêmios, incluindo o Prêmio Brasília (Funarte) e o Prêmio XXI Salão Nacional de Artes Plásticas, Rio de Janeiro.
Em 1995, Maria do Carmo viajou para Barcelona, onde trabalhou no ateliê de Tristan Barbará, impressor de Antoni Tàpies. Em 2009, uma de suas gravuras integrou o álbum organizado por Ernesto Bonatto, comemorativo dos 10 anos da galeria Gravura Brasileira, dirigida por Eduardo Besen em São Paulo, SP. Em 2012, foi lançado o livro “Maria do Carmo Carvalho”, de autoria de Enock Sacramento, celebrando os trinta anos de sua trajetória artística.
Maria do Carmo Carvalho é conhecida por sua habilidade técnica e pela profundidade de suas obras, que exploram temas variados com sensibilidade e precisão. Sua contribuição para a arte brasileira é significativa, tanto pela qualidade de suas obras quanto pela influência que exerceu sobre novos artistas.
INFORMAÇÕES
texto da artista
"Ela é pedra, madeira, pedra, zinco...primeiro adversário do poeta da mão.
Os tempos heroicos do ato de gravar, as astúcias do ácido contra o cobre, nós o revivemos se tomarmos consciência da matéria inicial atacada pela mão.
A gravura mais do que qualquer outra técnica remete-nos ao processo de criação. Ela é a arte que não pode enganar. É primitiva, pré-histórica, possui todas as multiplicidades do mundo hostil, do mundo a dominar. O verdadeiro gravador é um trabalhador, um artesão.
Quando uma imagem apresenta-se em forma de gravura ela é o resultado de um longo processo. Resquícios emotivos, cognitivos são fragmentados, incorporados a outros, fragmentados mais uma vez e assim sucessivamente. As imagens sobrepostas surgem, a água-tinta cobre o desenho de uma chapa, o raspador abre luzes mostrando os subterrâneos do ato gravado, as linhas voltam e se houver água-forte elas não se entregam.
Como todo ato criador, a gravura pronta é para mim um objeto de surpresa, motivo de curiosidade e afeto.
Nessa individual mostro trabalhos onde a cor tem assumido protagonismo. Ela tem sido o próprio assunto das minhas monotipias, pinturas e gravuras.
Maria do Carmo Carvalho