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Maria Villares

São Paulo

1940

SOBRE

Chegaram nesse mundo com os olhos curiosos e as mãos ávidas por tocar a terra, as cinzas, os gravetos em que pisaram, as minas de grafite. Seus gestos foram de espalhar as sementes, semeá-las num lanço girado, meio louco, meio ébrio. Seus pés amassaram o barro e o barro tingiu-lhes o corpo como sangue, como carne de si mesmos. Cavaram o solo com as unhas até o humus comer-lhes os sabugos enquanto o cheiro úmido dos seres que dormem à sombra se levantava e lhes inflava as narinas. Plantaram ali também os ossos de seus semelhantes, misturados às sementes, aos esporos, ao líquen iridescente. Comeram o alimento, sugando e lambendo o caldo que lhes escorria pelos membros, sôfregos, felizes, sob a copa de uma árvore imensa e antiga de onde pendiam ninhos e teias brilhantes. Ao longe, as cadeias de montanhas se erguiam escuras contra a luz do ocaso. O fogo, o lume, ainda era tentado com espanto e nele aqueceram suas peles cobertas por desenhos intrincados. Seus sussurros ressoavam no fundo da floresta como sons estranhos, ameaçadores. Deitaram-se sobre folhas gigantescas imprimindo seus corpos misturados, esmagando a seiva ainda viva, que tingia a terra. Encolhidos uns nos outros, arregalaram os olhos para o céu, com saudade, recordando nebulosas, gigantescas medusas a moverem-se no espaço longínquo, e então sonharam.


Ernesto Bonato

Novembro 2024

Maria Villares
SOBRE
OBRAS
OBRAS
EDU, CV, EXTRAS
Bio

Minha iniciação na arte aconteceu no silencio do meu ateliê e se aprofundou no convívio com pintores, gravadores e ceramistas.

Assim como me interessa o diálogo do desenho com a pintura e com a colagem, interessa-me a autonomia da gravura e da cerâmica.

O trabalho foi se configurando através das afinidades eletivas com artistas e obras que me inspiram e me auxiliam a encontrar meu caminho.

O detalhe de uma fotografia, objetos encontrados ao acaso – flores secas, conchas, pedras, gravetos – podem desencadear uma pintura, que mais tarde pode abrir espaço para o desafio de novas mídias.

The starting point pode ser uma imagem, uma emoção, o reflexo da luz na janela, uma música, um poema…

Com o amadurecimento do trabalho veio a necessidade do diálogo com o público através da participação em salões.

Exposições individuais e coletivas aconteceram como consequência tanto no Brasil como no exterior.

INFORMAÇÕES

OS NEXOS DE MARIA

Vera d’Horta


A fabricação da existência e seus limites sempre interessaram a Maria Villares. Ela tem observado o metabolismo interno das formas, em busca de entendimento dos processos marginais. O esqueleto dos seres naturais, visível nas radiografias, o desenho dos gravetos apanhados na praia, a estrutura irradiada da teia da aranha, tudo isso vem sugerindo caminhos a seguir.

Quando ela dissecou a maçã em lâminas, foi para seguir de perto a sua morte, a perda dos fluidos, examinar os resíduos, as peles secas se tornando couraças. Depois percebeu que suas metades traziam evidentes sugestões embrionárias, a vida se apresentando novamente. Sementes, casulos, fetos são referências de natureza uterina que há algum tempo habitam seus trabalhos. Na peça de cerâmica presente nesta exposição, a pedra no meio da água une a mimesis da gestação à sugestão delicada do ikebana.

Em obras mais recentes, ela continua a radiografar essa construção dos significados. O processo é igual àquele percorrido por quem tem as palavras, antes das idéias. E são as palavras que se enredam para construir um sentido que não se sabe bem de onde vem. O gesto feminino, antigo e eterno, de tecer e envolver, proteger e enredar, surge ampliado nestas obras. Grandes agulhas e o movimento repetido das mãos foram construindo, com fios de plástico branco, malhas que não são para vestir.

Quando o trabalho se avolumou, seu peso sobre o ventre a levou às lágrimas. Nascia um sentido. Ela viveu o interior desse processo voltada para o ritmo cadenciado dos dedos, como Penélope, que fez uma aliança com o tempo infinito da espera. Não por acaso, Maria deu a esta série o nome de Nexus e a genealogia dos vocábulos é reveladora. No Latim, nexus é nó, laço. Daí, ligação, vínculo, união.

O conjunto dos nós constrói a trama, que se apresenta como corpo lasso, mas que também é cota, armadura que respira. Resultaram estruturas rarefeitas e solitárias, de construção imperfeita, que exibem todos os acidentes de fabricação. Meio tricô, meio teia, seus corpos vazados lançam sombras no espaço, e essas projeções são como gravuras móveis. Parece quase natural que as tramas caminhassem a seguir para a superfície do papel, primeiro em forma de desenho, depois como gravura.

Os riscos de tinta reescrevem, com dramaticidade contida, o enredo dessas agonias silenciosas, e o vaivém dos laços resulta numa sorte de escrita espelhada. Os aparentes garranchos dos desenhos esgarçam as tramas, criam voragens, abrem espaços para a luz. Na gravura, positivo e negativo se espelham novamente, desdobrando suas imagens.

E nessas seqüências ampliadas, o que menos interessa é a perfeição, mas o mapeamento afetivo do tecido e do processo. E vale lembrar Aristóteles quando disse que os ofícios manuais completam o que a natureza não terminou.


Vera d’Horta, 2006
para a Exposição Maria Villares e Margot Delgado
Galeria Gravura Brasileira – São Paulo/SP

Depoimento

A memória interpreta o que se viveu ou o que se pensa ter recordado."J. L. Borges


Série Nexus

Certo dia, em abril de 2001, era ainda bem cedo, encontrei várias teias de aranha entre árvores e arbustos, de diferentes tamanhos e formas, cheias de orvalho. Este encontro me tocou; idéias começaram a surgir, relacionei as gotas de orvalho a lágrimas, aos líquidos liberados quando as tensões se liberam, segundo Louise Bourgeois. Observei o trabalho daquelas aranhas, refazendo os fios continuamente com eficiência invejável. Alguns dias depois comecei a tecer com os fios plásticos transparentes. Me ocupei com a construção da trama sem antever o resultado final; era preciso tricotar muito, construir teias, repetindo sempre meus gestos, continuamente, por horas. Por vezes tive a sensação da suspensão do tempo e o envolvimento intenso permitiu que a memória e os afetos aflorassem. O fazer se fez trabalho…

Com o adensamento das malhas, e o volume acumulado em meu colo, após as primeiras horas, senti como se uma grande quantidade de líquido houvesse se materializado pelo movimento de meus dedos. Fui tomada por intensa emoção e me lembrei de quando tricotava, há vários anos, apenas para manter minhas mãos ocupadas, construía peças utilitárias. Era um fazer mecânico. Agora a ação me pega por inteiro, a alma está presente, é uma atividade prazerosa, um fazer poético; existe uma intenção. É imprescindível o gesto repetitivo, envolvente, que dá forma a esse tecido, mas a perspectiva do projeto é muito maior.

Os desenhos começaram quando os primeiros módulos já estavam adiantados. Tive vontade de registrar as sobreposições dos fios, os nós, a linha ondulada e contínua. Utilizei vários tipos de tinta, penas e canetas, eu mesma fiz algumas de bambu. Estas variações geraram interesse especial porque ocorreram diferenças sutis na linha. Como aconteceu com o tricotar dos fios, também este ato de desenhar solicitou a repetição do movimento, atenção continuada e muita calma. O olho fixo na linha das malhas, do já construído, capta o percurso dos fios e a mão os traduz em tinta sobre papel e ranhuras sobre tinta.

Acho que depois de montados, os módulos produzidos adquiriram um caráter de desenho no espaço, houve uma complementação, um espelhamento das duas produções.

Em seguida surgiram os objetos, alguns feitos em técnica de crochê , estruturados por costuras e fios de chumbo. E a produção continua com gravuras em metal e pintura sobre tela, sempre enfatizando a linha.

(*) Nexus, us: enlaçamento, nó, laço.

Nexus, a, um: atado, ligado, encadeamento das causas. (dicionário latino)

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